CONJUR: Locação para temporada, Airbnb e o STJ
Muito se tem discutido acerca dos contratos de locação celebrados por intermédio da plataforma Airbnb, o que tem ensejado conflitos dos mais diversos entre locador, locatários e os condomínios nos quais localizados os imóveis locados, fato esse que já permitiu a análise do tema pelo Superior Tribunal de Justiça.
E recentemente o STJ tratou do tema entendendo pela possibilidade de a convenção condominial (com aprovação de pelo menos dois terços) proibir o que ali se denominou de locação de “curtíssimo prazo” [1].
Os fundamentos do STJ foram os seguintes: 1) essa locação implica “afetação do sossego, da salubridade e da segurança, causada pela alta rotatividade de pessoas estranhas e sem compromisso duradouro com a comunidade na qual estão temporariamente inseridas”; 2) “a alta rotatividade de pessoas estranhas, em espaço de tempo cada vez menor (…) repercute na vida dos demais condôminos”; 3) o “direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel (…) deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio”; 4) “o direito de propriedade, assegurado constitucionalmente, não é só de quem explora economicamente o seu imóvel, mas sobretudo daquele que faz dele a sua moradia”; 5) “nos condomínios que oferecem diversas opções de lazer (…) por vezes confundidos com clubes recreativos, a própria demanda por espaços de uso comum é diretamente afetada”; e 6) “embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil”.
Do quanto acima fica para nós a convicção de que o STJ voltou seus olhos unicamente para o tema da segurança dos demais condôminos, tendo ainda analisado o tema da comodidade e conforto, tudo isso com o objetivo de justificar a proibição, em convenção ou regulamento condominial, do aluguel de “curtíssima temporada”.
O entendimento em questão concluiu que o aluguel de “curtíssima temporada” é o vilão maior e causador de insegurança e desconforto, e tanto é assim que no acórdão foi colacionada matéria jornalística que trata de um lamentável caso que, por ser episódico, não poderia, jamais, refletir a realidade dos milhões de contratos de aluguel de “curtíssima temporada” viabilizados também por intermédio do Airbnb.
E foi com base nessas premissas que entendeu o STJ que o direito constitucional da propriedade detida pelo locador poderia ser restringido no bojo das convenções e regulamentos condominiais, o que nos parece, contudo, equivocado, conforme apontaremos a seguir.
Em primeiro lugar, destacamos que a legislação aplicável não distingue locação para temporada e aquilo que o STJ definiu como “locação de curtíssima prazo”, razão pela qual essa tentativa de criar duas subespécies de locação para temporada não se deveria admitir e não poderia servir de subsídio para enfrentamento da questão.
Portanto, o que o STJ tenta identificar como locação de “curtíssimo prazo” nada mais é do que a locação para temporada prevista no artigo 48 da Lei 8245 de 1991 (Lei de Locação).
Veja-se, nesse sentido, que o artigo 48 da Lei de Locação prevê que a locação com prazo não superior a 90 dias é “locação para temporada”, não fazendo distinção se o prazo é de dias, semanas ou meses. Não sendo superior a 90 dias, a locação é para temporada.
Ou seja, não se pode tratar de maneira diferente os contratos denominados “de curtíssimo prazo” em razão daqueles outros de prazo “não tão curto”: se forem celebrados com menos de 90 dias hão de ser considerados locação para temporada.
Ao que parece, o que se pretendeu foi tentar criar diferenças que juridicamente não existem, e tudo isso com o objetivo de discriminar os contratos de locação para temporada regularmente intermediados por plataformas tais como o Airbnb, o que, como visto até aqui, não se pode admitir.
Em sendo os contratos de temporada disciplinados pelo artigo 48 da Lei de Locação, nota-se também que, ao contrário do que o acórdão do STJ expôs em suas razões, não é possível distinguir-se o conceito de moradia em razão do prazo da locação e, em se tratando de aluguel para temporada, o imóvel locado se destina, por presunção legal, para moradia, conforme redação do dito artigo 48.
Desse modo, igualmente não pode prosperar o entendimento no sentido de que o direito de moradia dos demais condôminos deveria prevalecer, posto que os locatários “de curtíssima temporada” são, também eles, titulares do mesmo direito de moradia, que igualmente deverá ser tutelado e protegido.
Feitos esses esclarecemos iniciais, importante ainda trazer à lume que as hipóteses que o artigo 48 da Lei de Locação traz causa da locação para temporada são meramente exemplificativas: o uso do imóvel locado pode ter como causa quaisquer “fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo”.
Sendo assim, nos parece que o acórdão aqui analisado enseja inconstitucional tratamento desigual em desfavor dos locadores e locatários de imóveis para temporada, eis que trata situações idênticas de maneira distinta, o que não se pode admitir, sob pena de afronta ao caput do artigo 5º da Constituição Federal (CF).
Desse modo, todo e qualquer locatário para temporada (que é a hipótese dos contratos intermediados pelo Airbnb), que utiliza o imóvel para fins lícitos, deverá ser considerado morador e não pode ser visto como intruso ou indivíduo indesejado e causador de toda sorte de problemas. Todavia, pelo que pudemos identificar mais acima, foi justamente essa uma das premissas do acórdão aqui discutido: tomou-se por presunção quase absoluta que o locatário para temporada (de prazo “curtíssimo”) seria causador de insegurança, balbúrdia e incômodos sem precedentes, o que revela uma leitura, no nosso sentir, equivocada.
Por tal razão, a conclusão de que a permanência de locatários “de curto prazo” nas dependências do condomínio seria perniciosa aos demais moradores, além de contra legem, releva um preocupante preconceito e tratamento diferenciado a pessoas que se encontram no mesmo patamar de proteção legal.
Como se não bastasse impedir aos locatários que tenham acesso à moradia inerente à locação para temporada (o que é permitido às demais espécies de locação e aos proprietários), além de caracterizar nova afronta ao caput do artigo 5º da CF, releva grave afronta ao caput do artigo 6º também da CF, que alçou o direito à moradia a direito social que deve ser garantido pelo poder público.
Cremos ainda ser equivocado tratar a locação de “curtíssimo prazo” como a grande causa das mazelas que acometem condomínios e condôminos, tendo em vista que os inúmeros problemas de convívio e de segurança inerentes à vida em condomínio são conhecidos recorrentes há décadas. Ou seja, a locação de “curtíssimo prazo” não é a causa desses problemas, que por óbvio não surgiram com a sua recente popularização.
Além do mais, necessário destacar que os contratos de locação residencial por prazo superior a 90 dias não são vistos como causadores dos mesmos problemas ora atribuídos unicamente à locação por temporada, mesmo sendo plenamente possível a esses outros contratos ensejar grande circulação de pessoas em razão dos visitantes recebidos pelo locatário, ou então em virtude de suas recorrentes rescisões antecipadas.
E se todos os contratos de locação têm capacidade de ensejar idênticas preocupações aos condomínios, por qual razão apenas o locatário para temporada é visto como indesejado? As respostas, ao que nos parece, revelam uma tendência discriminatória em relação a este último, que está a receber tratamento ilegalmente diferenciado, que o coloca em posição de injusta desvantagem, o que não se pode admitir.
O mesmo se observa em relação ao locador: temos firme que vedar o contrato de locação para temporada, admitindo-se, por outro lado, a celebração das outras espécies de locação, se afigura ilegal limitação ao constitucional direito de propriedade, o que também revelaria mais uma injusta e ilegal forma de tratamento diferenciado, mas dessa vez em prejuízo do locador.
Se ambas as espécies de locação têm aptidão de causar os mesmos problemas que se tenta atribuir unicamente à locação para temporada, não se justifica a vedação de uma, ao mesmo tempo que se admite a outra. A conclusão é uma só: se na essência são o mesmo negócio e têm aptidão de ensejar aos mesmos problemas, não se pode admitir o tratamento diferenciado.
Não obstante, não se pode vedar os contratos de “curtíssimo prazo” sob o argumento de ausência de clara definição doutrinária: não havendo proibição legal, toda atividade, em tese, há de ser permitida.
Por tudo quanto visto até aqui, percebe-se que a vedação ao contrato de locação para temporada não se justifica e que as questões relacionadas à segurança e bem-estar dos demais condôminos não podem servir de fundamento para tal, o que nos parece equivocado e contrário à isonomia e ao direito social à moradia.
É inequívoco que a maior profusão dos contratos para temporada traz diversos e novos desafios aos condomínios, que, ao invés de dar de ombros para mais esse avanço social, deveriam é se adequar a essa nova realidade, tendo-se sempre em mente os benefícios que esse “novo negócio” traz para todos os envolvidos, inclusive para o próprio condomínio, que reduziria sua vacância e inadimplemento da taxa condominial, por exemplo.
De outra banda, se a questão toda diz respeito à segurança e bem-estar dos demais condôminos, não se pode admitir a restrição à locação de “curto prazo” sob a justificativa de buscar soluções para antigos problemas que não causados por essa espécie de locação, que poderiam ser solucionados com o implemento de controles mais rígidos de segurança e mais efetiva fiscalização do uso das áreas comuns. Com isso, os condomínios não incorreriam nas ilegalidades aqui apontadas, permitiriam o livre exercício do direito de propriedade por parte dos locadores, propiciariam maior geração de riqueza e menor vacância, além de garantirem o acesso à moradia por aqueles que dela necessitam por menor prazo.
Não se pode permitir que impere um estado de negação que cerra os olhos ao novo e enseja respostas refratárias às novidades que transformam o a sociedade. O receio do novo não pode impedir o avanço social e econômico e não pode permitir o tratamento diferenciado daqueles que se encontram em situação de igualdade.
[1] STJ — Recurso Especial 1.884.483 — PR (2020/0174039-6) — julgado em 23 de novembro de 2021.
Por: Helder Moroni Câmara, Doutor em Direito e MBA em Direito Empresarial.
Artigo originalmente publicado no site ConJur.